Pauta Legal – da Periferia ao Centro

Pauta Legal
Da periferia ao centro
Durante muito tempo, e ainda hoje, às margens de vários processos sociais, as vilas e favelas tem caminhado para o centro das atenções acadêmicas. Pesquisadores, principalmente sociólogos, voltam cada vez mais o olhar para a periferia.

O assédio das universidades tem ganhado espaço na pauta de discussão dos grupos culturais da periferia. A produção de monografias, dissertações e teses ocupam um espaço cada vez maior no universo dos artistas de vilas e favelas. As abordagens para pesquisa, alteram o cotidiano dos grupos e trazem, na avaliação deles, benefícios, mas também desvantagens. José Antônio Inácio, coordenador do grupo Arautos do Gueto, no Morro das Pedras, já perdeu a conta de quantas pesquisas foram realizadas com o grupo, que completa, neste ano, uma década. “Para o Arautos é muito importante receber pessoas de outras instituições para pesquisar o trabalho, mas o que a gente acha complicado é que muitas vezes as pessoas coletam material com o grupo, fazem seus trabalhos, ganham seus pontos, as entidades ganham seus prêmios e a fonte de informação continua do mesmo jeito”, revela Antônio Inácio.

O que muitos grupos reivindicam, na verdade, é a contrapartida do pesquisador, como revela a fala de Inácio, a seguir: “Nós não queremos dinheiro, nós queremos uma contrapartida seja ela qual for, mas que venha em benefício da entidade. Umas das coisas que nós sempre falamos com as pessoas que vêm, algumas trabalham com psicologia, odontologia, inglês, espanhol, é que poderia haver uma troca. Se as pessoas doassem um horário para um jovem em um projeto de 100 seria uma grande coisa para nós”, sugere o coordenador do Arautos.

Nil César, coordenador do Grupo do Beco, companhia de teatro do Aglomerado Santa Lúcia, partilha da mesma opinião que Inácio. “A primeira coisa que eu pergunto quando os estudantes vêem é a contrapartida que o grupo vai receber. Não é interessante para a gente só a cópia da monografia. Eu hoje escolho bem as pessoas que vão pesquisar a gente. Eu sou um profissional, o tempo que eu uso para dar entrevista é um tempo que eu estaria trabalhando. Eu tenho que ter uma contrapartida.”, diz Nil. Aliás, as observações sobre a alteração da rotina de trabalho são comuns entre os grupos culturais, que muitas vezes se sentem pressionados a se adequarem aos horários dos pesquisadores.

Rodrigo Edinilson, mestre em sociologia, professor da PUC Minas e coordenador do Projeto Conexões de Saberes / MEC, na Faculdade de Educação da UFMG explica que, embora tenha aumentado, o fascínio pela periferia não é uma novidade. De toda forma, ele ressalta que, agora, mais que em outros tempos, a atenção está voltada para as realidades próximas. “O que eu imagino é que venha acontecendo uma mudança que é também de olhar. Sobretudo na sociologia havia uma preocupação com o outro distante. Pensava-se em missões para a África e para a Asia. Sempre houve na ciência um fascínio pelo outro exótico. Em dado momento ou outro passou a ser um outro mais próximo”, analisa.

Segundo o coordenador do Conexões de Saberes, o que mais atrai os pesquisadores para um objeto é a diferença, mas em relação à contrapartida ele diz que não existe uma regra ou um pensamento comum sobre o assunto. “A Universidade tem esse fascínio pelo exótico, pelo diferente, e muitas vezes, a vontade que existe é a de entender para ajudar ou para conhecer, independente de se fazer alguma coisa”, diz. De toda forma, o pesquisador avalia que é possível este movimento de troca, mas ressalta que ele depende da relação entre pesquisador e pesquisado.

“A impressão que eu tenho é que a academia só percebe que existe favela no final do semestre. E aí fica aquela sensação permanente de ser ratinho de laboratório, termo que já virou um jargão na periferia”, desabafa Nil César. Rodrigo Edinilson esclarece que noções sobre o objeto de pesquisa as vezes são constrangedoras para as partes.” A noção de objeto de estudo, as vezes, é interpretada como sendo algo passivo, incomodo”, explica. A falta de continuidade do trabalho e, algumas vezes, de compromisso dos pesquisadores com o objeto de estudo e a realidade estudada, é apontada por muitos como um ponto negativo dos processos de pesquisa. “Parece que a miséria é importante apenas para ser pesquisada. São poucos profissionais que saem da academia e mantêm algum vinculo com a gente”, completa Nil.

O responsável pelo Conexões de Saberes coloca um ponto importante, também observado por Nil e Inácio, que é a existência de pesquisadores com olhares diferenciados. “Neste movimento de pesquisa de fora para dentro, existe a entrada de pessoas que tem uma identificação com estes lugares, ou por causa de suas trajetórias, ou por outro motivo, mas que passam a ver este lugar sob outra ótica”, observa o pesquisador, fazendo uma avaliação positiva de trabalhos que agradam pesquisados e pesquisadores.

Na contramão da atualidade

Enquanto, hoje, o comum é que a Universidade produza pesquisas sobre a periferia, em breve, a situação pode ser alterada. Com o aumento, embora tímido, do número de jovens pobres nas universidades, aumentam também as possibilidades de pesquisas sobre estes lugares. “O que eu acho que pode acontecer com moradores das camadas populares entrando na academia é que vai alterar a visão que a universidade tem do cotidiano”, avalia Nil.

Para Rodrigo Edinilson esta nova realidade traz mais de uma situação possível. “O olhar do nativo sobre seus iguais traz um componente positivo e as suas armadilhas. Pode significar por exemplo que a pessoa tenha menor propensão de colocar a comunidade no lugar de carência ou de falta. Mas pode ser também que elas não consigam questionar o natural”, explica.

Conexões de Saberes: estabelecendo uma via de mão dupla

A Universidade Federal de Minas Gerais, através da Faculdade de Educação, desenvolve hoje um Programa do MEC, chamado Conexões de Saberes na UFMG. A finalidade é estabelecer relações entre a universidade e as comunidades populares, por meio da interlocução constante entre os saberes produzidos nos dois espaços. A peculiaridade do Conexões de Saberes na UFMG é que busca romper com a mera "intervenção" da universidade nas comunidades, pautada no pressuposto da hierarquização do saber e na representação destes espaços apenas como o lugar da carência.

O Programa realiza, juntamente com a comunidade e/ou o poder público, atividades de investigação, levantamento e disseminação de informações sobre a situação dos moradores de periferia em duas comunidades da região metropolitana de Belo Horizonte, estimulando o desenvolvimento de políticas públicas e de projetos orientados para este segmento da população. A concepção metodológica do Conexões de Saberes conta com a parceria dos Programas Observatório da Juventude da UFMG e Ações Afirmativas na UFMG. Atualmente, o Conexões trabalha com moradores do Aglomerado Santa Lúcia e de Contagem.

FONTES
Rodrigo Edinilson – mestre em sociologia e um dos coordenadores do Conexões de Saberes, MEC/FAE/UFMG – Tels: 3499-6188 / 9258-7598
José Antônio Inácio – coordenador do Grupo Cultural Arautos do Gueto – Tels: 3334-0117 / 9954-5180
Nil César – fundador do Grupo Beco – Tels: 3344-1123 / 9687-6801