Com a voz Própria

Com a voz  própria

Esta matéria foi publicada pelo caderno especial Pensar Brasil do Jornal Estado de Minas .

Por : Janaína Cunha Melo
 

A despeito dos piores prognósticos a respeito da modernidade, ou justamente em consequência deles, fenômenos como o movimento hip hop surgem como uma implosão. Resposta imediata e incontida de jovens em todo o mundo, diante da necessidade de se fazerem ouvir. A maior parte deles reivindica justiça social, igualdade de condições, fim de preconceitos históricos, sobretudo racial e econômico. Vindos de periferias e aglomerados urbanos, do Brooklyn, nos Estados Unidos, à Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, não é senso comum que o que eles buscam tem a ver com ascensão ou deslocamento de classe social. Ao contrário, exibem orgulho de “ser favela”, de pertencer a estrutura complexa de organização social que tem seus meios de lidar com a inoperância governamental, o descaso e a escassez.

Nesta busca essencialmente política, motivada por razões ideológicas, a palavra ganha potência em meio exaustivamente apontado como avesso à leitura e à escrita. As letras de rap assumem contorno narrativo,como crônicas de uma realidade até então pouco investigada, e que começam a reclamar atenção como poesia,como gênero literário de merecido destaque nas discussões acadêmicas.
As artes plásticas e visuais, então herança dos detentores de recursos materiais e meios tecnológicos, ganham as ruas com traços irregulares, subversivos e propositadamente desacomodados,para revelar angústias de quem deseja se apoderar da cidade para além de suas fronteiras geográficas, financeiras e emocionais, que distinguem o centro da periferia.
Na dança de rua, corpo e movimento transgridem as formas habituais, os modos adequados, em coreografias que destoam das exigências padronizadas para revelar habilidades outras, que não se restringem à capacidade de repetir, com perfeição, roteiros sacralizados.
Ganha os palcos dos grandes teatros em resultados de pesquisas de linguagem de grupos interessados em desvendar as potencialidades do corpo em movimento, ao mesmo tempo em que resignifica o espaço público e as ruas, atribuindo-lhes valor de salas de espetáculos ao ar livre, de acesso irrestrito,também atribuindo novo sentido ao conceito de democratização.
Articulados com movimentos populares e organizações independentes, artistas de periferia estabelecem vários níveis de interlocução com pretensões ousadas.
Num primeiro momento, se fazem notar como meio de investigação e descoberta do próprio papel social.
Em seguida, se aventuram em processo de construção de saber que em muito ultrapassa a estreiteza dos interesses pessoais.
Se nos anos 1990, pouco mais de uma década depois de as primeiras expressões do hip hop tomarem forma no Brasil, a multiplicação de projetos sociais, públicos e privados, revelou que este movimento poderia se converter em um caminho possível de afastamento da juventude do assédio da criminalidade em vilas e favelas, hoje é fato que superou as expectativas. Não apenas pelo potencial prático ou por suas feições utilitárias, mas pelo que o movimento revela a respeito de uma geração acusada injustamente de ser pouco articulada do ponto de vista político e nada interessada no desenvolvimento social.
O que esses sujeitos manifestam com a arte que fazem é a recusa dos meios convencionais e superados de fazer política, de ser cidadão .Com menor ou maior competência estética, integram uma rede de atores sociais militantes, que oferecem suas contribuições para a consolidação de uma sociedade que precisa ser compreendida a partir da diversidade que a constitui.
Por sua condição libertária, independente de compromisso com a verdade do tempo que expressar, a arte pode ser instrumento – de superação, reconhecimento, valorização e muitos outros –, mas reúne todos os elementos para ir além deste caráter utilitário.
Não é conciliadora, lúdica, panfletária ou contestadora como um fim, mas como resultado da reflexão a respeito do que se revela. Patrimônio imaterial de valor inestimável rara a comunicação e expressão, permite ser e reconhecer no outro o igual por quem pode valer a pena zelar. Não pelo princípio religioso da bondade, mas pela perspectiva generosa de querer, e poder, compartilhar certezas e dilemas que se impõem como desafios para todos.