O papel das ONGs na periferia

Hoje, do ponto de vista institucional, a periferia vive uma realidade diferente das décadas anteriores. Além do poder público e religioso, normalmente envolvidos em ações de cunho social, as comunidades contam também com a atuação das populares ONGs. De acordo com o primeiro diagnóstico do Terceiro Setor realizado em Minas Gerais, Belo Horizonte tem 1807 organizações não governamentais.

Na pesquisa, realizada pelo Centro de Apoio ao Terceiro Setor do Ministério Público de Minas Gerais (CAOTS), a distribuição por área de atividades ou atuação mostra que, em primeiro lugar, estão as organizações voltadas para a assistência social, com 33% do total. Educação e pesquisa aparecem em seguida, com 18%. As outras distribuem-se da seguinte maneira: cultura, com 10%; religião, com 9%; saúde, com 7%; esporte e lazer, com 3%; defesa de direitos e atuação política, com 3%; organização de benefícios mútuos, com 2%; meio ambiente e animais, com 2% e outras áreas de atuação, perfazendo 13% do total de entidades cadastradas.

Os trabalhos realizados pelas instituições componentes do terceiro setor muitas vezes desempenham funções necessárias para potencializar a qualidade de vida da população e promover a cidadania, minimizando ou extinguindo dificuldades de muitas destas pessoas. Um caso muito freqüente é o das mães que precisam trabalhar e deixar os filhos em um lugar seguro. Outro exemplo é a facilitação do acesso ao lazer, capacitação e formação profissionalizante e a arte.

Nas comunidades do Taquaril e da Vila Fazendinha, por exemplo, é desenvolvido um trabalho social pelo Projeto Providência, criado em 1988. O projeto, que hoje oferece desde o maternal até o ensino profissionalizante, surgiu por iniciativa de Padre Mário, quando era vigário da Paróquia de Nossa Senhora das Vitórias, no Bairro Jardim Vitória, onde idealizou o trabalho com jovens e crianças. De acordo com Padre Mário, coordenador da instituição, o Projeto Providência busca atender em áreas diversas e oferece alimentação, apoio escolar, lazer, esportes, atendimento odontológico, formação social, política, econômica, religiosa e ambiental. Os educandos, após completarem dezesseis anos, participam do processo de iniciação profissional: aprendem um ofício e são encaminhados ao mercado de trabalho. O pároco ressalta que uma das funções do Projeto é fomentar o diálogo entre os jovens, que muitas vezes vivem em famílias desestruturadas, ou em que os pais saem para o trabalho e não dispõe de tempo para contribuir com eficiência na educação dos filhos.

Outro exemplo é o Projeto Querubins, atuante na Vila Acaba Mundo desde 1994, que nasceu a partir de uma iniciativa de Magda Coutinho, consultora em hotelaria. O desejo de realizar atividades que estimulassem a socialização de crianças e adolescentes da comunidade foi o ponto de partida. A primeira atividade do Projeto foi um mutirão ecológico, com a participação das crianças, para revitalizar a Praça JK. O mutirão despertou a atenção da Prefeitura, que buscou parcerias com empresas para tornar a Praça uma referência de lazer para os moradores do local. Em 1999 foi criada a Associação Querubins, entidade responsável pelo Projeto. De acordo com Hernany Mendes de Faria Pinto, psicólogo e um dos coordenadores da entidade, são desenvolvidas atividades como acompanhamento psicológico e escolar; aulas de informática para comunidade e educandos; encaminhamento ao mercado de trabalho; aulas de dança e percussão; além da participação em um fórum de entidades, para discutir a melhoria da qualidade de vida da comunidade como um todo. “O engajamento das crianças e jovens nas atividades torna possível a construção de um projeto de vida para eles. Com as atividades de arte-educação, percebemos que há melhora no aprendizado que as crianças recebem na escola e, para a comunidade, a violência e o desemprego sofreram queda drástica”, avalia.

A respeito da oferta de atividades de arte e cultura para a periferia em Belo Horizonte, Hernany acredita que está havendo um aumento, mas que ainda está aquém do necessário: “Deve haver mais parcerias entre o Poder Público, ONGs e comunidades para gerar oportunidades, desenvolvimento humano e abrir perspectivas para o futuro dos jovens, que ainda estão muito carentes de arte e cultura, dependendo da região onde moram”, opina.

Marisa Brandão, técnica do Programa de Socialização Infantil e Juvenil e do Pro-Jovem, ambos programas promovidos pela Prefeitura de Belo Horizonte em parcerias com algumas ONGs, destaca a relevância do trabalho realizado pelo Terceiro Setor nas periferias. “O papel desempenhado pelas ONGs é especialmente importante no campo das Políticas Sociais e da Assistência Social. As ONGs são resultado da própria mobilização popular, reapresentando um lugar em que a sociedade civil atua e ajuda a encontrar alternativas aos problemas existentes, auxiliando na fiscalização dos serviços oferecidos pelo Poder Público”.

Para Marisa Brandão, as entidades contribuem de fato para a formação profissionalizante, escolar, artística, esportiva e para o lazer. “As ONGs contribuem nestes aspectos, o que não exime o poder público, que tem a maior responsabilidade de garantir esses direitos da população. As entidades complementam, reforçam e chegam onde o Poder Público ainda não chegou. A sociedade não pode assumir isso sozinha. Deve ser feito um trabalho em conjunto, porque o Poder Público também não pode dar conta de tudo sozinho. O contexto nacional e mundial mostra isso. As ONGs têm um papel facilitador do acesso das populações carentes aos seus direitos. Explicitam a demanda através de diagnósticos e despertam a atenção do Poder Público para as necessidades das comunidades”, opina.

O crescimento do número de ONGs que trabalham com a periferia em Belo Horizonte desperta o interesse para a questão. Dr. Thomaz de Aquino, juiz responsável pelo CAOTS considera o aumento do número de ONGs como um resultado da mobilização social. “Este processo se deve à descoberta da sociedade da necessidade de união para solucionar problemas. É uma questão que está diretamente relacionada à conscientização sobre a atitude de mudar aquilo que não está bom”, afirma. Para ele, as ONGs desenvolvem trabalhos de suma importância para as comunidades. “As entidades buscam soluções para questões sociais, ambientais, preocupando-se em garantir à população direito à saúde, educação, alimentação, moradia, e aproximam o poder público do povo, diagnosticando e fiscalizando ações que devem ser implementadas”, explica.

A arte e a cultura no terceiro setor

Acompanhando o crescimento de ONGs que trabalham voltadas para a periferia, cresce também o número das que promovem arte e cultura, em detrimento daquelas com foco na profissionalização. Segundo o coordenador do CAOTS, a explicação para este fato reside no poder de escolha das pessoas. “Muita gente quer criar ONGs para pobres continuarem pobres. Cursos de marcenaria, corte e costura, inglês são importantes também, mas é preciso procurar saber o interesse das pessoas, suas escolhas porque assim as coisas não ficam impostas. Se existe interesse nas comunidades por capoeira, pagode, rap, percussão, teatro, eles devem ser atendidos. As de profissionalização normalmente são impostas”, desfecha.

A mudança de foco da profissionalização para a cultura na periferia pode estar relacionada, segundo a antropóloga Clarice Libânio, a resultados pouco eficazes dos cursos profissionalizantes na empregabilidade e melhoria da renda dos alunos envolvidos. Em geral relacionados a áreas de baixa qualificação e baixos salários, os cursos oferecidos não contribuíam, em sua maioria, para a mudança do status quo.

Por outro lado, e na contramão deste processo, a cultura foi superestimada. “Antes quase todas as instituições presentes na periferia ofereciam estes cursos profissionalizantes, sem fazer um trabalho de encaminhamento profissional, funcionando como paliativos. As opções de profissões eram aquelas pouco valorizadas. Hoje ainda existem as instituições que oferecem cursos profissionalizantes, mas são focadas somente neste objetivo. Por outro lado, o valor da cultura foi superestimado e foram atribuídos a ela uma série de papéis que, às vezes, ela não tem como suprir: capacitar os jovens, garantir sua inserção social, acabar com a violência, combater o tráfico, carregando uma responsabilidade exagerada”, opina.

Os “filhos de ONGs”

De fato, o que se vê é que as ONGs, muitas vezes, cumprem a função de diversas outras instituições, das escolas, do governo e até mesmo das famílias. O risco que se corre, de acordo com os entrevistados, é gerar dependência nos usuários dos projetos e uma cultura de obrigatoriedade da prestação dos benefícios. Por outro lado, a formação educacional e social que jovens e crianças recebem nas entidades abre para elas perspectivas profissionais, estimulam a mobilização por melhorias nas comunidades onde vivem. Em diversos casos, os educandos crescem e ser tornam educadores, como é o caso do Projeto Providência.

“Aqui os nossos educadores são da própria comunidade, temos cerca de vinte educadores que receberam formação aqui. Certa vez, Dom Serafim me disse que este trabalho é a solução para os grandes problemas que afligem os jovens. Oferecemos oportunidades de trabalho através da profissionalização. Aqui trabalhamos também a socialização, porque há muitas famílias desestruturadas e que não têm condições de dar o apoio que damos. Os jovens ficam felizes de poder dialogar e se preparar para a vida. Os pais sempre agradecem e parabenizam o nosso trabalho”, conta Padre Mário.

O psicólogo Hernany Pinto, da Associação Querubins, diz ser freqüente ex-alunos tornarem-se monitores e educadores no Projeto. “Temos um ex-aluno que hoje é um dos assistentes de coordenação, o Ronilson Luiz Mário, de vinte e dois anos. Ele hoje é professor de dança livre aqui no projeto, dá aulas de dança de salão em academias e também na Escola Corpo de Dança, do Grupo Corpo. Outra é a Rita de Cássia, professora de dança de salão, que dá aulas em academias e aqui na Querubins. Os dois aprenderam os primeiros passos no Projeto. Como monitor e ex-aluno, está Cristiano Souza, que auxilia o professor nas aulas de música. O Leonardo de Lima, percussionista, trabalha em outro projeto social, a AME – Ação Mineira pela Educação, onde dá aulas e contribui para a formação sócio-cultural de outros jovens e crianças”, relata.

Leonardo de Lima reconhece o valor da formação recebida no Projeto Querubins. “Foi o Projeto que me deu um norte, um caminho a seguir, como artista e como cidadão comum. Contribuiu para o meu crescimento em relação ao ambiente, ao comportamento humano, me fazendo refletir sobre tudo e aprender a ouvir as pessoas. Tenho uma relação de afeto com as crianças que hoje precisam de ajuda como eu precisei e preciso ainda. Infelizmente temos um número muito grande de ONGs registradas em Belo Horizonte. Digo infelizmente, porque mostra como o Poder Público é despreparado para suprir as necessidades do povo”, Diz.

Sobre as ONGs que trabalham com arte e cultura, Leonardo acredita que existe neste processo algo para além da educação artística. “As ONGs que trabalham com arte e educação estimulam o conhecimento, a leitura, apoiando atividades escolares. E a cultura está muito além de ensinar a pintar um quadro, a arte não foi feita para educar ninguém. Ela não é uma ferramenta, é um processo contínuo de transformação”, constata.

Fontes:
Marisa Brandão, técnica do Programa de Socialização de Jovens e Crianças e do Pro-Jovem.
Ex-coordenadora de ambos os programas da PBH.
Contato: 3277-4532
E-mail: [email protected]
[email protected]

Dr. Thomaz de Aquino, Juiz responsável pelo CAOTS – Centro de Apoio ao Terceiro Setor do Ministério Público Estadual de Minas Gerais.
Contato: 3291-7849 / 3291-4056 – CAOTS / 3330-8016 / 3292-2404 – Assessora Valéria Flores

Clarice de Assis Libânio, antropóloga, coordenadora da ONG Favela é Isso Aí.
Contato: 3225-5483

Padre Mário, coordenador do Projeto Providência.
Contato: 3483-3887 / 3466-7196

Hernany Mendes de Faria Pinto, psicólogo e coordenador da Associação Querubins.
Contato: 3287-2831

Leonardo de Lima, percussionista e arte-educador da Associação Querubins e da Ação
Mineira Pela Educação (AME).
Contato: 9214-8365

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