ONG’s de Arte e Cultura cobram eficiência e ação conjunta entre órgãos que trabalham na proteção à criança e ao adolescente

A violência doméstica e o desrespeito aos direitos das crianças e adolescentes estão fazendo as entidades que trabalham com arte e cultura na periferia gritarem por socorro. O convívio cotidiano com problemas deste tipo têm feito as ONG’s reivindicarem, cada vez mais, uma atuação conjunta entre os órgãos governamentais. Muitas vezes, além de oferecer suporte psicológico e orientação aos adolescentes, essas organizações são responsáveis pelo encaminhamento de denúncias ao Conselho Tutelar.

A coordenadora de uma ONG que é referência em formação artística em Belo Horizonte relata que, diariamente, são constatadas histórias de violência familiar entre os 800 jovens que são atendidos pela instituição. Um dos casos mais graves, de acordo com a psicóloga da entidade, foi denunciado há quatro anos ao Conselho Tutelar. A denúncia envolve duas crianças, de uma mesma família, com ocorrências de espancamento e suspeita de estupro. Outra psicóloga, da mesma entidade, diz que é corriqueira a constatação de violação de direitos. O espancamento em casa, por exemplo, é uma constante e existem suspeitas até de casos de prostituição com aval familiar.

Apesar de atuarem na vertente da educação e da arte, os problemas diários reafirmam para estas entidades que a proteção à juventude perpassa diversos campos sociais, aí incluídos família, escola, saúde, etc. É neste sentido que as organizações ressaltam a importância de articulações, não apenas com os conselhos tutelares, mas com os demais órgãos governamentais que atuam junto a esse público.

Apesar de não conseguirem uma atuação conjunta mais eficaz, os conselhos tutelares vêem as ONG’s como parceiras no diagnóstico e resolução de muitos casos. “Como a entidade está direto com a criança e o adolescente, esses jovens têm confiança para revelarem mais elementos sobre os abusos. Na hora de uma conversa no Conselho, a gente não ganha confiança da criança em um dia”, diz Rogério Rêgo Silva, representante do Conselho Tutelar Regional Centro-sul.

Ao analisar as situações de violação dos direitos, uma das psicólogas da entidade ouvida diz que as famílias destas crianças não têm estrutura para oferecer uma educação de qualidade, oferta que também configura proteção. “A carência simbólica da educação não é apenas dos filhos, mas das mães e dos pais. Tem menino que fica na rua o dia inteiro e a família, de certa forma, abre mão de cuidar”, avalia a psicóloga. “A questão de a criança ficar exposta à violência dele com o outro e do outro com ele é o prato do dia. Essa coisa do bater começa em casa. A educação pela via da palavra é muito difícil de acontecer. Tem mães que chegam à entidade é dizem ‘você pode ficar a vontade, pode bater mesmo’, é absurdo”, completa.

Em outra ONG, que trabalha arte e cultura com 250 jovens, a realidade da violência doméstica é constatada. De acordo com a coordenadora, ela acompanhou casos de crianças que apanharam de fios de ferro e borracha e até de um menino que chegou com as costas sem pele por causa de uma surra que levou do pai. Apesar da violência explicita, ela diz que a violência velada também é corriqueira, são casos de abandono, inclusive de crianças com deficiências mental e física. Ela conta um caso em especifico que marcou sua vida e da instituição. É a história de uma criança com deficiência mental que, após a denúncia da entidade ao Conselho, ficou 11 anos em internato, afastada da mãe, por decisão judicial.

“Eu cheguei à comunidade e ela estava toda suja de cocô e sentada no pneu sem roupa, na época ela tinha 12 anos. A mãe tinha viajado há quatro dias e a menina tinha sido abandonada com uma criança de seis anos. Conseguiram uma ordem do juiz para ela permanecer em um abrigo”, hoje, maior de idade a menina está em casa com a mãe alcoólatra e o irmão, que diz não ter condições de cuidar. A entidade fez novamente a denúncia, mas agora, na Secretaria de Direitos e Cidadania.

Para além do papel da família, a coordenadora da primeira ONG entrevistada aprofunda a avaliação sobre os papéis no tocante a prevenção e a repressão da violência familiar. “É uma responsabilidade, no que tange aos direitos, que abrange a polícia, que deve ter uma abordagem mais pensante; o acolhimento à saúde mental e física dessas crianças; a Secretaria dos Direitos; o Juizado da Criança e do Adolescente e muitos outros”, analisa.

E é no sentido de garantir os direitos, em forma de políticas públicas para ação integrada, que atua o Conselho de Direitos. De acordo com Ivan Ferreira da Silva, coordenador da Comissão de Medidas de Proteção do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o órgão tem atuado muito próximo aos programas da Secretaria Municipal de Assistência Social e às ONG’s em termos de orientação de políticas. Ele diz que a própria composição do Conselho, que é formado por 20 representantes governamentais e 20 não governamentais, facilita essa aproximação das demais entidades. De toda forma, Ivan Ferreira admite que a estrutura do Conselho de Direitos ainda é um dificultador para estabelecimento de uma relação concreta com todas ou a maioria das entidades que trabalha na periferia. “Qualquer instituição, para atender crianças e adolescentes, tem que estar registrada no Conselho, mas, infelizmente, hoje por causa da infra-estrutura, não podemos estar com todas. Nós precisamos de um projeto de acompanhamento, de ter uma equipe de apoio que acompanhe as dificuldades destas entidades”, revela.

As dificuldades de atuar junto às entidades do terceiro setor não fazem parte apenas da realidade do Conselho Municipal dos Direitos, mas também dos conselhos tutelares, que são justamente a ponta, a porta de entrada para as denúncias. O número pequeno de conselheiros e a deficiência na infra-estrutura são os principais problemas. A avaliação é unânime, ela parte dos conselhos tutelares, de direitos e das ONG’s. “Eu acho que o Conselho é muito sobrecarregado de trabalho, o Conselho é muito atento, mas ele tem pouca mão de obra e poucas ferramentas. O corpo técnico teria que ser maior e o Conselho deveria ser participar da vida da comunidade”, avalia a coordenadora de uma das ONG’s. Além da infra-estrutura física,e equipamentos e mão de obra insuficientes, o conselheiro de direitos ressalta que o grande problema é a ausência do plantão 24 horas, que atuaria em um intervalo que, muitas vezes, nem as ONG’s poderiam acompanhar. “Até hoje não existe um plantão. O atendimento é de segunda a sexta, apenas de manhã e a tarde. A maior parte dos casos acontece a noite, nos finais de semana e feriados”, enfatiza.

O próprio Conselho Tutelar admite que a demanda excede a capacidade de atendimento, mas o representante da regional centro-sul acredita que, na medida do possível, o órgão tem uma boa atuação. Ele ressalta que o Conselho acaba ficando com uma sobrecarga de responsabilidade porque as pessoas confundem o papel do órgão, que é responsável apenas pelo primeiro atendimento. “O Conselho é um órgão, a princípio, de proteção à comunidade em geral. Às vezes as pessoas e até as organizações entendem o Conselho como um órgão de responsabilização e nós não estamos lá para punir”, diz Rogério Rêgo, ressaltando o papel de avaliação e encaminhamento do Conselho.

Rogério Rêgo também lembra que o próprio Juizado da Infância e da Juventude recebe uma demanda excessiva se comparada à estrutura de atendimento. De acordo com ele, o Conselho Tutelar faz o que é possível, gerando o encaminhamento dos casos para a Secretaria de Direitos e Cidadania, à Promotoria da Infância e Juventude, à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente e ao próprio Juizado. Ele ressalta que os encaminhamentos são tanto para as pessoas que têm o direito violado, quanto para o violador.

Enquanto uma ação mais próxima não é possível, a melhor saída é manter o ritmo das denúncias

Apesar de uma atuação conjunta mais eficaz estar longe de ser efetivada de forma ideal em curto prazo, a continuidade das denuncias ainda parece ser a melhor opção. O representante do Conselho Tutelar Regional Centro-sul, reafirma, conforme reza o Estatuto da Criança e do Adolescente, que o papel da população, entre vizinhos e entidades, é denunciar qualquer tipo de abuso. No entanto, ele entende que é difícil para o denunciante se posicionar, já que existe, entre outras preocupações, o medo de represália contra a pessoa que denuncia ou contra a própria criança ou adolescente. Ele diz que, neste sentido, o que o Conselho pode fazer é assegurar o anonimato da denúncia e pedir ao denunciante que ele também tente fazer isto.

Além de denunciar, essas entidades vão cumprindo diversos papéis nas comunidades. “A realidade é atravessada de muita coisa dura, o projeto cumpre a função de trazer um pouco de organização do que eles fazem no dia a dia. Até a coisa da alimentação oferecida tira o menino da ordem do desespero, mesmo que o projeto não exista para isso”, reflete a psicóloga de uma dessas instituições. A coordenadora desta mesma entidade diz que, antes de mais nada, a ONG têm que se um espaço para o lúdico, um espaço agradável, que possa contrastar com a realidade destes adolescentes.

Ainda que a ação em rede entre entidades públicas e não governamentais fique prejudicada por uma série de fatores, entre eles a infra-estrutura, a configuração governamental interna para estes casos tem uma realidade que progride. Andréa Moreira Sarmona, coordenadora de direitos humanos e cidadania da Secretaria Municipal de Direitos e Cidadania, relata que a Secretaria conta com atendimento integrado para dar suporte à rede de serviços. Tudo funciona de modo que as denúncias, já no atendimento, sejam encaminhadas para o seu departamento específico. “Agora estamos em um processo de construção de infra e metodologia. O objetivo é criar um atendimento integrado com uma equipe de plantão, para abarcar melhor essa complexidade da demanda. No caso do Conselho Tutelar o atendimento pode melhorar porque haverá mais pessoas envolvidas na Secretaria, para dar um suporte maior”, conta.

Embora ainda esteja em processo, a parceria com as ONG’s já é uma realidade no planejamento do município

Um convênio com o Governo Federal, firmado em 2005, prevê processos formativos para agentes da prefeitura e ONG’s que trabalham na área. O trabalho é parte das ações do Centro de Apoio à Vítimas de Violência Doméstica e Intra-familiar que existe desde 2002 e tem funções de atendimento às vítimas. “O projeto piloto está sendo realizado na regional leste, para mapear o perfil das vitimas e do agressor, e o tipo de violência. O trabalho será concluído em novembro, com a produção de um relatório. Depois serão reunidas as seis coordenadorias que fazem parte da secretaria para definir diretrizes de políticas públicas”, diz.

No tocante ao atendimento específico à periferia, Andréa Moreira diz que a secretaria pensa ações específicas. “A vulnerabilidade sócio-econômica, a falta de acesso às políticas publicas, tudo isso influencia e causa maior vulnerabilidade nesse segmento da periferia, já estão ocorrendo reuniões especificas para intervir diretamente e programar ações no local”, relata a coordenadora, já remetendo ao início de atividades focadas em bairros da Regional Leste.

FONTES PARA CONSULTA:
Andréa Moreira Sarmona – coordenadora de direitos humanos da Secretaria Municipal de Direitos e Cidadania de Belo Horizonte
Contato: 3277-4227 (assessoria de comunicação)
Ivan Ferreira da Silva – Coordenador da Comissão de Medidas de Proteção e conselheiro do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
Rogério Rêgo Silva – representante do ConselhoTutelar Regional Centro Sul / BH
Contato: 3277-4976 (assessoria de comunicação)