Projetos sociais como atividades disciplinatórias: um equivoco a ser revisto

Num mundo em que a insegurança é crescente e a mídia mostra a violência a cores na TV da sala, vem cada vez mais ganhando corpo uma concepção que vê projetos sociais como formas de “salvar” os jovens do crime. Nessa perspectiva, as ações de arte e cultura desenvolvidas por projetos sociais são freqüentemente reduzidas ao efeito de atividades disciplinatórias para jovens e crianças moradores de vilas e favelas. Esse discurso, que por diversas vezes representa o censo comum, na opinião de especialistas, desconsidera a arte como forma de transformação social e de abertura de novas perspectivas políticas, profissionais e familiares.
Para Cláudia Mayorga, ex-coordenadora do Espaço Criança Esperança do Aglomerado da Serra e Vice-presidente da ABRAPSO – Associação Brasileira de Psicologia Social em Minas Gerais, a arte, às vezes, é colocada como forma de alienação e usada como instrumento de dominação e acomodação política. “Não acho que arte e cultura sempre signifiquem isso, porque existem muitos jovens fazendo política e transformando seus mundos através da cultura. Mas dentro dos projetos sociais isso é bastante comum. Vale lembrar que a periferia, a arte e também a juventude são elementos desvalorizados culturalmente em oposição a valores de mais status como dinheiro, poder, razão, tecnologia e ciência. Assim, cabe perguntar sempre qual o alcance emancipatório de ações artísticas e culturais. Não acho que isso esteja dado, mas pode ser construído. Arte e cultura em si não promovem emancipação. Muitas vezes são utilizadas sim pra dominar e oprimir, silenciar e deixar passivo, mas arte e cultura promovem muita emancipação. Temos que ter uma visão crítica sobre a questão”, avalia.

Arte e cultura como instrumentos de alienação

O discurso disseminado no senso comum, de funcionamento de projetos artístico-sociais enquanto ações disciplinatórias, ocorre devido a diversos fatores, de acordo com Cláudia. “O grande problema de alguns projetos sociais e culturais é o fato de chegarem em determinados contextos sem buscar entender as lógicas que regem ou estão presentes nos contextos de comunidades de periferia ou grupos sociais historicamente excluídos – onde geralmente atuam esses projetos. É fundamental conhecer o contexto onde esses projetos atuam. Por vários motivos: primeiramente, porque quando nos aproximamos dessas realidades, vamos ver que existem experiências muito ricas e saberes que estão presentes ali. Saberes esses que aprendemos a chamar de não-saber, de irracional e de algo menor, aprendemos a desvalorizar e essas crenças são os principais pontos que levam a ações disciplinatórias e colonizadoras junto a grupos sociais excluídos: achamos que ‘eles’ são sem cultura, sem educação, sem história, sem saberes e estabelecemos relações onde ‘nós’ somos aqueles que vamos levar tudo a eles: a cultura, a educação, a história, os saberes” diz Mayorga, avaliando um antigo discurso, o tal do ‘levar cultura para a periferia’, facilmente desbancado pela visão antropológica do conceito de cultura como modos de vida.
Mayorga diz que essa lógica disciplinatória, encontrada em muitos locais, é mesma da colonização. “Essa lógica está no Brasil há mais de 500 anos e continuamos repetindo isso. Acredito que esses grupos sociais têm buscado formas de resistência e enfrentamento a realidades adversas vividas por eles, que estão longe, muito longe de ser sem saber, sem cultura, sem valores. Essa visão é totalmente etnocêntrica e não poderá levar a práticas diferentes do que as práticas disciplinares e de colonização. O que queremos quando falamos de inclusão? Será que de fato queremos incluir jovens e crianças nesse mundo totalmente competitivo, desigual que exclui o diferente na primeira esquina que aparece? Acho que é isso que muitos projetos querem: continuar disciplinando a periferia, relegando negros e negras, jovens e mulheres a lugares de obediência e passividade. É como se o projeto (representantes da sociedade) dissesse: – Olhem, vocês que são da periferia, são pobres e negros, cantem e dancem pra nós! Vocês até que sabem fazer isso bem, mas o poder não, esse nós não vamos dividir “, questiona.

Arte como abertura para reflexão

Para Helly Costa, artista plástico, fundador e coordenador do Projeto Arte Favela, a discussão deve ser mesmo aprofundada para não reproduzir a fala simplista acerca do papel disciplinatório que a arte assume em determinados contextos sociais. “Antes eu achava que a arte seria um meio de salvação social, mas hoje vejo que é uma motivação para o ser humano mostrar o que ele sabe. O ser humano precisa de arte e cultura para se inserir na sociedade. A arte tem um poder ímpar de socializar pessoas, mas a educação, a família, a escola, têm um papel fundamental na formação do cidadão também. Ela por si só não serve para tirar ninguém do crime, ou das drogas, mas sim de socializar, de abrir caminhos para reflexões sobre o contexto social no qual as pessoas das comunidades e fora delas vivem, instigando um olhar crítico sobre a sociedade e a compreensão do melhor caminho a seguir na vida”, analisa.
Ainda de acordo com Helly Costa, o papel dos projetos artístico-sociais nas comunidades vai além de simplesmente tirar jovens e crianças das drogas e das ruas. “O papel da arte não é tampar um buraco social dos problemas que os governantes deixam de lado. Os projetos artísticos não são feitos para cobrir problemas sociais. A arte pode trazer consciência, através dela o jovem pode descobrir que existe um caminho mais interessante e agradável do que o crime”, completa.
Para Magda Coutinho, coordenadora e fundadora do Querubins, projeto atuante na Vila Acaba Mundo, a oferta de arte e cultura para uma comunidade pode trazer benefícios no campo das relações inter-pessoais, afetivas e profissionais. A coordenadora acredita que o pensamento que está por trás de ações disciplinatórias de cunho artístico-social é extremamente preconceituoso. “È uma visão muito simplista e preconceituosa dizer que a arte tira o jovem da rua e das drogas, porque poucos na comunidade onde trabalho estão nas ruas ou nas drogas. Eles têm suas casas, suas famílias. O que acontece é que os meninos sentem que o projeto é um lugar acolhedor, onde são recebidos de forma amorosa. Faz muita diferença na vida deles esse olhar afetuoso longe de preconceitos. Se todas as crianças tivessem oportunidades iguais não ficariam tão vulneráveis aos problemas sociais. O olhar que temos não é o do preconceito, elas são estigmatizadas pela condição social, mas elas lutam contra isso e mostram com as oportunidades que têm inteligência e capacidade”, opina. “Hoje temos mais de 250 crianças no projeto que estão tendo oportunidades de se mostrar e se expressar artisticamente e como pessoas, mas não estariam necessariamente nas ruas e no tráfico se não existisse o projeto. Pela arte eles desenvolvem auto-confiança, auto-estima, favorecem a ter um projeto de vida, de sonhar e realizar seus sonhos”, afirma Magda.
Para a fundadora do Projeto Querubins, o grande sucesso e o grande desafio das ações de arte-educação é trabalhar um olhar crítico com as crianças e jovens, para que eles consigam discernir os caminhos que devem seguir como cidadãos. “Possibilidades de cometer erros todos têm, mas se for uma pessoa bem estruturada em valores vai ter condições de realizar opções de vida mais satisfatórias. É um grande desafio trabalhar esse ser crítico. Devemos estar sempre atentos nos questionamentos dos jovens e responder à altura, para que eles possam refletir sozinhos e formar a sua identidade própria”.
Helly Costa acredita no poder da arte-educação como transformador social, alicerçado na informação, que para ele é o ponto-chave, capaz de gerar mudanças positivas e espontâneas, suprimindo o caráter impositivo vigente em alguns projetos da área. “Podemos exemplificar o discernimento dos jovens através do grafite, como forma de manifestação. Ele pode representar um ponto dissonante contra o sistema, de resistência social mesmo. Se um jovem picha consciente em perspectiva de protesto, isso também é arte, e a arte não tem que ser bela, o olhar sobre o que é belo é relativo. Por isso, é importante a informação que está inserida na arte. Quando o jovem picha por pichar está sendo mecânico, reproduzindo um comportamento de outras pessoas. Mas se ele tiver a curiosidade despertada pela arte e tiver acesso à informação para compreender a arquitetura de um prédio, ou o motivo da construção de um monumento, ele vai ser capaz de decidir se deve pichá-lo ou não de acordo com as suas convicções”, explica.

Fontes:
Magda Coutinho – Fundadora da Associação Querubins
Contato: (31) 3287-2831
Claudia Mayorga – ex-coordenadora do Espaço Criança Esperança, Vice-presidente da Associação Brasileira de Psicologia Social em Minas Gerais
Contato: [email protected]
Helly Costa – fundador e coordenador do Projeto Arte e Favela
Contato: 3486-3049 (Viva) / 8846-5644

Foto desta matéria: Mural dos jovens do Projeto Arte Favela