A insegurança que a normalidade provoca

Há dois anos o Observatório de Favelas iniciava um projeto ambicioso de comunicação, a Escola Popular de Comunicação Crítica, ou simplesmente Espocc. Sob o seu guarda chuva, uma formação técnica e teórica nas áreas de audiovisual, fotografia e jornalismo para moradores de espaços populares da cidade do Rio, colocou em curso um processo de mudanças que gradativamente se faz sentir no campo de comunicação da cidade. Sua meta, deslocar o eixo de discurso sobre os espaços populares, abrindo a possibilidade para que jovens e adultos projetassem sobre a cidade uma visão mais diversa sobre as periferias da cidade, capaz de multiplicar as visões e dar conta da sua complexidade e riqueza cultural.
Nesses dois anos, inúmeros foram os avanços nesse sentido. A Escola e os alunos formados na primeira turma, em Dezembro de 2006, se envolveram em ações com impactos em diversos níveis sobre as suas vidas e a vida da cidade. Além da perspectiva de profissionalização com geração de renda nessas linguagens, a escola conseguiu criar um espaço de interlocução entre esses jovens e instituições tradicionais do campo de comunicação. Um exemplo do que esse diálogo pode resultar foi recentemente estampado na capa de revista de um dos maiores jornais de circulação do país, O Globo. Uma matéria realizada por fotógrafos formados pela Espocc mostrou como a favela se diverte nos fins de semana. Em instantâneos da realidade belos, simples e sinceros, esses jovens puderam mostrar seus espaços sob outra perspectiva, diferente daquela que a grande parte da mídia costuma veicular.

Normalidade incômoda

As estatísticas e denúncias sobre favelização e falta de urbanização, os conflitos entre polícia e tráfico, as notícias sobre vítimas de bala perdida foram substituídas por imagens que denunciavam um outro tipo de realidade, tão corriqueira e comum quanto um banho de piscina na laje, jovens soltando pipa, pessoas se divertindo em um show dentro da favela. Imagens que impressionam não pelo impacto do lado mais cruel e elétrico desses espaços, mas pela sua normalidade, pelo tom corriqueiro de uma vida que também escorre lenta e sensualmente nas vielas e ruas da favela. É uma normalidade que nos deixa confusos pois contradiz completamente as imagens usuais sobre a favela e nos aproxima de uma forma incômoda de seus seres humanos. Incômoda por que nos torna íntimos daqueles a quem pouco conhecemos, seja pelo próprio desinteresse, seja pelas prisões que construímos em nossas mentes. Incômoda por que em última instância nos faz refletir sobre nossas próprias existências e a nossa relação com o outro. A normalidade que essas imagens acusam nos choca por que humaniza as estatísticas de mortos e feridos que todos os dias insiste em emprestar ao universo de favelas da cidade uma imagem brutal e chocante, por que questionam nossas opiniões tão batidas e formadas sobre esses lugares. Por que abrem um vácuo de insegurança, não a pública, mas a existencial, aquela que diz respeito ao que fazemos de nossa breve passagem por este mundo. Infelizmente nos acostumamos com a segurança gerada pelo medo que os noticiários provocam. Pode parecer um contra senso, mas o medo diariamente destilado pelas páginas dos jornais e imagens da televisão gera uma segurança porque aponta de forma clara quem é o inimigo, a quem devemos combater para preservarmos nossos bens, nossa família, nossas viagens de fim de semana à casa de praia. O noticiário define um rosto para os fantasmas que nos assustavam em nossas infâncias e que imaginávamos estar embaixo da cama. A manchete de jornal aponta, olhe bem! O inimigo não está embaixo da cama, ele está do seu lado, ele é seu vizinho. Ele ameaça o asfalto, a cidade! É uma praga! Precisamos controlar essa epidemia que se alastra cada vez mais e mais!

Desconstrução do medo

A comunicação de massa foi construída em cima desse medo ancestral que sentimos, dessa necessidade tão inconsciente de segurança frente aos perigos da vida, sejam eles catástrofes naturais, guerras civis, pit bulls assassinos ou simplesmente o perigo oferecido por nosso vizinho que mora ao lado e a quem oferecemos um bom dia, boa noite tão burocrático quanto as guias que preenchemos para ganharmos uma identidade ou CPF. Corremos aos shoppings por que eles nos oferecem essa segurança tão desejada.. Eles nos protegem com seus muros e vitrines dos inimigos e estimulam nosso sonho de consumo, mas o que consumimos são nossos próprios medos transformados em objetos de desejo. Não é à toa que as grandes corporações de comunicação não existem sem os grandes anunciantes. No caso da cidade do Rio, os medos precisam ser nomeados e nada mais confortável do que chamá-los de favela.
Esse paradigma estabelecido de comunicação é a que a Espocc vem combatendo, naquilo que os antigos chamavam de “combater o bom combate”. Queremos desconstruir esse medo, mostrando que as fronteiras que existem na cidade, naquilo que se convencionou chamar de “cidade partida”, estão mais em nossas cabeças do que na geografia caótica do Rio de Janeiro. Por isso optamos por mostrar esse outro lado cotidiano das comunidades. No entanto, não queremos apenas substituir um discurso por outro, o que cairia em uma outra visão reducionista sobre as favelas, tão comum nas décadas de 50 e que gerou sambas belíssimos. Para além da construção de uma visão romântica e ingênua sobre esses espaços, queremos multiplicar as vozes, formar um arco-íris tão colorido possível sobre as periferias da cidade. A dor e a crueldade ainda existem e fazem parte da complexidade da favela, mas não esqueçamos que elas também existem sob outras formas dentro da cidade da qual a favela faz parte. Não há como pensar em soluções para os problemas mais visíveis desses espaços sem nos questionarmos a maneira como temos desempenhado nossa cidadania e cuidado do espaço público. Enquanto a solução não for enxergada sob diversas óticas, tais sentimentos de impotência, que atualmente parecem tomar conta do carioca, precisam ser equilibrados com as alegrias e prazeres que a favela tem a oferecer e vive porque a vida é assim, uma sucessão de noite e dia, claro e escuro, com nuances e tons de luz que mudam a cada hora, a cada segundo, assim com o ser humano, assim como eu e você. Olha a Foto!

Matéria de: Márcio Blanco, coordenador de audiovisual da Escola Popular de Comunicação Crítica

Fonte: http://www.observatoriodefavelas.org.br/
observatorio/noticias/noticias/4458.asp

As fotos da matéria original são de de A.F. Rodrigues, Jaqueline Félix e Sadraque Santos, algumas das quais publicadas na Revista do jornal O Globo