Ideologia, política e ética

Desde a divulgação pela imprensa de uma construção ilegal de 11 andares na favela da Rocinha, me outubro de 2005, voltou-se à tona o debate em relação à remoção de favelas. Esse tema já foi discutido em outras épocas, como no início do século XX, na construção da Avenida Central, hoje Rio Branco. E na década 60, com uma política de remoção implantada no Rio de Janeiro, quando as pessoas foram removidas para a Cidade de Deus e Vila Kennedy, em locais distantes do centro da cidade.
Agora novamente temos o debate, e como sempre pautado por preconceitos que apenas diminuem a importância do tema. A idéia que prevalece na discussão é de que a favela é o espaço da pobreza e é preciso separá-la da sociedade. Ao contrário, é preciso uma política de aproximação e de pensar em soluções que se mantenham no longo prazo.
Os exemplos que temos de remoções no Rio de Janeiro não são promissores. A remoção de favelas como a da Praia do Pinto, da Catacumba e a criação de bairros novos como de Vila Kennedy em Bangu para a instalação destas populações foi feita de forma violenta. A população foi deslocada e removida para locais distantes do seu trabalho, uma política autoritária imposta às classes mais pobres. Precisamos pensar não em paliativos, mas em soluções.

E o que mais?
Simplesmente dizer que não devem ser realizadas remoções também não é um posicionamento racional. É preciso que políticas de habitação sejam discutidas de forma séria, pensando nos entraves logísticos, materiais, humanos e políticos de forma aprofundada, além da lógica que legitima essa proposta e a liberdade de escolha de quem mora em favelas. É preciso compreender a problemática no contexto da cidade, nos contexto das políticas sociais e habitacionais.
No discurso atual, a proposta de remoção parte do pressuposto de que a sensação de insegurança de uns justifica a intolerância dos outros. Essa política se justifica pelo argumento de que a favela não faz parte da cidade e não é legítima, mas esquece que o Estado nunca teve interesse em legitimá-las. Além disso, a forma como vem sendo debatido hoje só aumenta a intolerância e a sensação de insegurança e preconceito com relação às favelas, como se essas fossem as responsáveis pela pobreza e violência. Essa violência ameaçadora acaba por mascarar as contradições sociais que cada vez mais se ampliam nos centros urbanos.
Qualquer pessoa sensata consegue enxergar que todos esses problemas foram deixados por políticas que vigoram a quase um século, de coabitação no mesmo espaço urbano, de duas realidades, dificultando para os demais moradores da cidade aceitar a igualdade com aquele que sempre foi desigual.
As ocupações de fato degradam, só que mais uma vez a visão do problema é tomada de maneira simplista, apresentando a favela como problema para a cidade sem apresentar soluções para as favelas e seus moradores. Não se fala da questão habitacional. Ignoram-se as condições por vezes precárias de moradia. Sua solução não é pensada na perspectiva dos moradores.

Outro entrave
A luta contra a forma como tem sido discutido a remoção de favelas é maior do que se imagina. Em matéria do dia quatro de outubro de 2005, o jornal O Globo realizou uma série de entrevistas com vereadores do Rio, com o prefeito, e com associações de moradores dos bairros do Leblon, Gávea e Barra da Tijuca sobre as remoções de favelas. Os principais interessados e atingidos com a medida, que deveriam ter voz nesse momento, nem ao menos foram interpelados na reportagem. Nenhuma associação de moradores das possíveis comunidades atingidas foi ouvida.
Além desse posicionamento declarado de favorecer a política de remoções (já que o público-alvo da publicação é a classe média e média alta), o jornal na seção Cartas dos Leitores não colocou nenhum posicionamento contrário às remoções. Pode parecer que todos os leitores que enviam correspondência para o jornal sejam a favor, porém isso é falso. Diversas foram os e-mails enviados por membros do Observatório de Favelas e amigos para O Globo criticando tanto o posicionamento do jornal como a política de remoções, embora nenhum tenha sido publicado.
A lógica reinante nas grandes empresas de comunicação é sempre de trabalhar com a manutenção do senso comum, evitando qualquer tipo de questionamento contra os interesses capitalistas e que exponham de alguma forma as fragilidades e contradições do sistema. Os setores dominantes não pretendem discutir uma política habitacional para a cidade.
A forma de se retratar a vida nas periferias e favelas extrapola os limites da TV e se reproduz no cotidiano de indiferença Contra esse fluxo midiático, é necessário levar em conta algo além da concessão de moradia, mas discutir políticas habitacionais que possam estar resolvendo de fato esses problemas.

A lista do MP
O Ministério Público listou 14 favelas, consideradas localizadas nas áreas mais críticas da cidade. A análise foi feita a partir de mapas do Instituto Pereira Passos. Para o Ministério Público nenhuma lei municipal, estadual ou federal pode impedir a remoção das favelas abaixo, porque considera todas em áreas de risco ou de preservação ambiental permanente.
As favelas são as seguintes: Grotão, no Jardim Botânico; Vila Parque da Cidade, na Gávea; Açude, Tijuaçu, Mata Machado, Sitio da Biquinha e Agrícola, no alto da Boa Vista; Furnas e Fazenda, no Itanhangá; Morro do Banco, Covanca, Tangará, Bela Vista e Inácio Dias, em Jacarepaguá. Notamos que essas favelas ocupam espaços considerados “nobres” no Rio de Janeiro e isso confirma a intolerância que os setores dominantes têm em relação aos pobres, que devem ficar bem longe deles.

Direito Fundamental
O direito de moradia reveste-se das características de um direito fundamental (arts. 1º, II e III, c/c 3º da Constituição Federal), pois se trata, sobretudo, de um direito da dignidade humana, de acesso à habitação, de ocupar um espaço urbano sem fragmentação, onde os frutos das políticas públicas sejam distribuídos de forma equânime.
O art. 138 do Plano Diretor do Município do Rio de Janeiro, ao direcionar a política habitacional do Município, inclui a regularização fundiária e a urbanização das favelas (inciso III). A partir deste dispositivo, o Plano Diretor reconhece a necessidade de uma nova visão da política fundiária para as favelas, não mais as excluindo: arts.140, que dá os instrumentos para a regularização fundiária (usucapião e concessão de direito real de uso – V e IV; 141, que inscreve a favela como área de especial interesse social; 146, que prioriza os programas de regularização e urbanização de favelas e, do 147 em diante, os quais abrem uma seção exclusiva para a urbanização e regularização fundiária das favelas do Rio de Janeiro.

Texto de Vitor Monteiro de Castro, jornalista do Observatório de Favelas
Foto: Programa Vila Viva – obra no Aglomerado da Serra