Favela de brinquedo leva meninos à Itália

Rio de Janeiro, 17/07/2007

POR TALITA BEDINELLI
da Prima Pagina

Chega o final de semana e jovens de favelas cariocas fazem fila na porta do baile funk. Depois da diversão, eles voltam para casa. Alguns vão para a missa na manhã seguinte, outros compram pão na padaria da esquina. Esse poderia ser o cotidiano de moradores do Rio de Janeiro, se não fosse por um detalhe: os jovens em questão são feitos de peças de Lego e os lugares que eles freqüentam são uma cópia em miniatura de 20 comunidades do município. Eles são personagens e cenários de uma maquete que começou a ser construída por duas crianças em 1998 na Vila Pereira da Silva, em Laranjeiras, zona Sul do Rio de Janeiro, e que hoje ocupa 320 metros quadrados. É uma favela de brinquedo dentro de uma favela de verdade.

“A idéia era brincar. A gente não tinha o que fazer, então começou a criar o que via. A retratar o tráfico, o moto-táxi, o baile funk. Tentamos mostrar a realidade, o bem e o mal”, conta Nelcirlan Souza de Oliveira. Foi ele, na época com 14 anos, junto com o irmão, então com 8 anos, quem começou a mostrar — por meio de tijolos, garrafas Pet, restos de madeira e outros materiais recicláveis — como via a própria comunidade. A imagem inclui casas, praças, escadarias e até uma sede do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais).

A favela de mentira começou pequena, em um terreno vazio ao lado da casa dos meninos, mas servia perfeitamente como cenário para as histórias que eles criavam. Com o tempo, a brincadeira foi crescendo e despertando não apenas o interesse dos meninos vizinhos, mas de um cineasta que decidiu transformar a iniciativa em filme. “Sete anos atrás fui fazer um documentário sobre os garotos, mas nós [a equipe] éramos muito estranhos àquela realidade e não conseguíamos filmar, eles não ficavam à vontade. Nesse meio tempo, dois meninos começaram a se interessar pela câmera e resolvemos deixar que eles próprios se filmassem”, lembra o diretor de cinema Fábio Gavião.

O cineasta passou a dar aulas de assistência de câmera e de direção aos meninos e criou a TV Morrinho, uma produtora que começou também como brincadeira e que tinha, inclusive, uma sede em miniatura. “Compramos um terreno na maquete por 50 centavos e construímos um prédio da TV Morrinho no local. Convidamos artistas e sociólogos para visitar o lugar e divulgar a rede de TV em miniatura. Aí, a história foi crescendo. Até que uma ONG nos contratou para fazer um vídeo de verdade e tivemos que começar a produzir”, conta Gavião.

Desde então, muitas histórias foram criadas e filmadas pelos meninos. Entre elas, versões de Romeu e Julieta, a história do Saci Pererê e até uma novela em que um traficante morre durante um confronto com a polícia. Todos os filmes repetem o mesmo modelo criado há nove anos pelas duas crianças: os personagens são de Lego e os cenários, as favelas em miniatura. As encomendas também não pararam mais. Neste ano, o canal infantil de TV a cabo Nickelodeon veiculou quatro filmes produzidos pelos jovens, e um deles foi premiado em junho deste ano no Festival Audiovisual Visões Periféricas.

Com o passar dos anos, o cenário dos filmes também foi virando obra de arte. Por causa da maquete, os meninos já conheceram Natal, São Paulo, Recife, Campo Grande, França, Alemanha, Espanha e Itália — onde expõem uma versão menor do trabalho na 52ª edição da Bienal de Arte de Veneza, que começou em junho e vai até novembro. “Sempre vamos junto para explicar o valor que tem o projeto. Ele deixou de ser uma simples forma de passar o tempo para se tornar mais que uma profissão. Hoje ele é trabalho, futuro e vida para gente”, diz Nelcirlan.

Atualmente, os meninos são ajudados por mais oito artistas da comunidade. Juntos, eles formaram a ONG Morrinho, que é presidida pelo cineasta Fábio Gavião. O objetivo da entidade é fomentar a produção dos filmes e a participação nas exposições, além de transformar a Vila Pereira da Silva em um novo ponto turístico do Rio de Janeiro. “A gente tem o compromisso de fazer com que esse projeto seja reconhecido e gere recursos para a comunidade. Esses meninos hoje são uma referência. Tem uma molecada de 11, 12 anos querendo seguir os passos deles, se desviando de um caminho de violência”, diz Gavião.

Para melhorar a infra-estrutura do local e ajudar a construir um projeto de visitação ordenada à maquete, a ONG recebeu cerca de R$ 50 mil do PNUD e da Caixa Econômica Federal, por meio de um projeto de cooperação técnica entre as duas instituições. “Pretendemos fazer um estudo de impacto ambiental, contratar cinco pessoas da comunidade para trabalhar na administração do trabalho e construir um plano de negócios para o turismo. Esse turismo vai se concentrar em mostrar para as pessoas uma obra de arte e não essa coisa meio mórbida, que acontece atualmente na cidade, de querer mostrar como vivem as pessoas na favela”, destaca o diretor da ONG.