A capoeira literária do poeta Nov@to

Misto de dança e jogo, a capoeira se desenvolveu no Brasil a partir da contribuição africana, sobretudo, dos escravos da etnia banto. O capoeirista usa o gingado a fim de confundir o adversário, escapar de seus golpes, e procurar o momento e o ângulo certos para atacar. Acredito que este seja o estilo da “capoeira literária” protagonizada pela poesia de Wanderson Adriano Marcelo, mais conhecido como Nov@to. Tendo vivido na comunidade do Vietnã e hoje residindo no Primeiro de Maio, o poeta belorizontino costuma dizer que “iscreve com ‘i’”. Para ele, essa é uma forma político-literária de destacar a importância e o mérito da grafia desenvolvida pela própria periferia, sendo esta historicamente apagada por aqueles que escrevem com “e”.
 
O poeta diz ainda que não faz ficção, mas “fiquesão”. A literatura, para ele, não é uma válvula de escape para fugir da realidade, mas sim uma grande porta para acessar a complexidade da vida e extrair dela o máximo de lições. O projeto literário de Nov@to tem como lema: “não sou eu na lira, é nóis na fita”. O poeta, diferente de assumir a tradicional postura do “eu-lírico”, prefere se posicionar como uma espécie de “eu-comunitário”, pois, quando escreve, Nov@to faz questão de se identificar como porta-voz dos parceiros marginalizados pela sociedade de consumo, dos companheiros encarcerados pelo sistema prisional e dos amigos exterminados pelas tropas de elite, sejam elas da polícia, das facções ou do tráfico.
 Recebi das mãos de Nov@to dois trabalhos de sua autoria, que são autênticos marcos da literatura marginal produzida no país: uma coletânea de textos publicados no volume 3 da Coleção Prosa e Poesia no Morro (Favela é Isso Aí, 2007), além do livro Os monstros nascem anjus (no prelo). No poema “Queda”, Nov@to conta o drama vivido por um comerciante de drogas que acabou se tornando viciado na própria mercadoria que vendia. Vivendo à míngua, o sujeito foi flagrado quando furtava um isqueiro no boteco. Resultado: ele teve que ouvir ali mesmo a sentença ameaçadora: “Que humilhante ouvir/Xingo de cachaceiro/Maconheiro, noiado/Não tem disposição pra comprar isqueiro?/Tentou se explicar, mas não dá/Roubar de rico, tudo bem/Mas de quem não tem/É foda/Se continuar vai pra cova/Falou o botequeiro”. Trata-se de um código de ética cambaleante, visto que ao mesmo tempo condena-se o roubo dirigido aos mais humildes e carentes, sendo que a mesma operação passa a ser aceitável quando se refere a atingir os mais favorecidos e abastados pelo regime de desigualdade social. Cabe destacar ainda que foram reprovadas com veemência pelo dono do bar a preguiça e a pilantragem daquele que usurpou o acendedor, com o objetivo de se defender o trabalho e o empenho como procedimentos adequados para conquistar com merecimento e honradez o que se deseja.
 Do mundo das drogas, a poesia de Nov@to vai para o universo em desencanto da infância perdida. Com a estrutura familiar desarticulada, a formação escolar insuficiente, a pobreza cada vez mais avassaladora, Juju, personagem do poema “Rua de prazer”, deixa de ser uma vendedora de balas para se transformar em garota de programa: “A menina que vendia bala/Foi seduzida pelo cara/Que se vestia de terno e gravata/Tipo um magnata/Esses que só têm sentimentos/Pelo ouro e pela prata/O carro era importado/A menina descobriu/Que seu pequeno corpo tinha mercado”. Tratada como mulher-objeto, Juju faz parte do perverso processo de mercantilização do corpo feminino. Assim como ela, outras garotas estão condenadas a seguir a mesma carreira: “iniciam-se no semáforo/Faz mestrado na Guaicurus”. Cabe salientar que a mencionada rua do centro de Belo Horizonte é conhecida por sediar muitos pontos de prostituição.
Nos poemas “Sorrir” e “Lamentos do sofredor”, estamos diante de um “acrobata da dor” que não perde de vista o espírito crítico para transformar o mundo em um lugar mais justo de se viver. De forma consciente, Nov@to identifica os obstáculos internos e externos que ainda impedem a realização da felicidade existencial do “homem-coletivo”: “Eu tento sorrir, mas as mortes nas favelas vivem a insistir/Eu tento sorrir, mas há pessoas morrendo de fome no HAITI, JEQUITINHONHA, logo ali./Eu tento sorrir, mas as cadeias e presídios estão superlotados só com gente daqui/Eu tento sorrir, mas as chuvas estão aí,/barracos vão cair,/enchentes vão invadir os barracos e destruir,/defesa civil iludir./Eu tento sorrir, mas as lágrimas não são controladas por mim e teimam em cair./Eu tento sorrir porque sou otimista, se eu fosse me revoltar faria como os terroristas./Eu tento sorrir, mas o meu entorno não deixa, os políticos roubam, roubam e são destaque/da revista veja, mas que peleja!/Eu tento sorrir mas a intolerância está aí”.
O poeta mostra que há lamentos dignos de serem ouvidos e compreendidos. Muito mais do que meras reclamações passivas ou ladainhas à espera de um milagre, “Lamentos do sofredor” são declarações ativas feitas por um sujeito que convida o sistema a sentar-se no banco do réu, e ser julgado: “Lamentos do sofredor,/Lamento por te violentar com o meu grito de socorro,/Lamento te violentar com a minha forma de falar,/ Lamento te violentar com historias de dor, desamor, revolta, rancor…/ Lamento te violentar com a minha rebeldia, furtando celular de patricinha, ou vendendo/crack na boca mais quente que a guerra do Iraque./ Lamento te violentar com as minhas crianças que caminham e brincam nos guetos fétidos/e sujos de lama, da última enchente que te levou até a cama, feitas de caixas de banana./Lamento te violentar ao narrar o meu entorno, que bem perto do retorno te traz tanto transtorno./Lamento”. Lamento, poeta, por aqueles que se fingem de surdos para não escutar o seu lamento. Estes não nasceram anjus e preferem continuar monstros.
 
* Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG.