Hip Hop mineiro

O fôlego do hip hop mineiro
Esta matéria foi publicada pelo jornal o Tempo . 
Daniel Barbosa
 
São Paulo sempre foi a principal vitrine do hip hop brasileiro, mas vem, ao longo dos últimos tempos, perdendo esse status, em decorrência da expansão do funk carioca, que, no Rio de Janeiro, claro, sempre obscureceu a cena rapper. Menos suscetível ao batidão que desceu dos morros da Cidade Maravilhosa e se alastrou pelo país, Minas Gerais sempre manteve uma movimentação em torno do hip hop e, através de artistas que têm alcançado maior expressão, como o rapper Renegado, e projetos como o concorrido Duelo de MCs, começa a se projetar como um polo do gênero no país.
O DJ Roger Dee, que há cerca de um ano lançou a coletânea “Malucofonia”, reunindo diversos nomes do rap em Belo Horizonte, considera que a cena mineira tem se mantido estável, livre de maiores abalos, porque nunca houve no Estado o que se pudesse chamar de um mercado do hip hop. “É um cenário estável o do rap em Minas, ele nunca mudou muito em relação ao que sempre foi, porque aqui nunca teve uma indústria em torno do gênero”, diz, recordando que entre os anos 80 e 90, o movimento no Estado esboçou uma maior estruturação, capitaneada pela loja/produtora Black & White.
“Eles trabalhavam também com o funk, mas a verdade é que nenhuma das duas coisas virou. Mas hoje em dia a gente vê que está acontecendo uma coisa especial, o hip hop em Belo Horizonte está se reconhecendo, as pessoas estão querendo saber sobre a história do movimento aqui, para o que contribui muito a internet, a facilidade de acesso ao que se produz”, diz. Ele, que é um dos organizadores do Duelo de MCs, considera que esse pode ser um caminho para que a cena mineira do hip hop ocupe um posto de destaque no panorama nacional.
Quem se mostra bem mais empolgada com os rumos do movimento no Estado é a produtora Danusa Carvalho, empresária de Renegado, com quem criou a ONG A Rebeldia e está estruturando uma rede nacional de hip hop. “Não dá para comparar com São Paulo, mas, proporcionalmente, a organização do rap em Minas é maior e melhor. Você tem uma movimentação em torno que acontece tanto na Zona Sul quanto na periferia”, diz. Ela, contudo, faz coro com Roger Dee no que diz respeito à ausência de uma estrutura de mercado no Estado. “Percebemos que precisamos não apenas nos unir – o que já é uma realidade -, mas pensar na profissionalização dessa cena”, aponta.
Quem transita há mais tempo por esse ambiente atesta que, independente das possíveis carências ainda existentes, o panorama atual é muito mais receptivo. Há 22 anos envolvido com o movimento hip hop, o rapper Dokttor Bhu, que forma dupla com Shabê, considera que hoje em dia seja tudo mais fácil, do registro das composições à possibilidade de apresentá-las ao público. “Quando comecei, com 15 para 16 anos, era bem mais complicado viver disso. Hoje eu faço minhas produções em casa e não tem faltado espaço para a gente se apresentar. Nos próximos dias vamos tocar dentro da programação musical do FIT e também em espaços e projetos como o Butecando e o Festeatro”, diz, destacando que a dupla que integra foi aprovada no projeto Vozes do Morro e também pelo Edital de Circulação do programa Música Minas, no ano passado.
Outro veterano da cena, Lord Tuca, que há 27 anos mantém o grupo de dança Brother Soul, recorda que havia, sim, espaço em que rappers e b.boys se encontravam para mostrar seus trabalhos, mas hoje a visibilidade é maior. “Tem a ver com o fato de o pessoal da Zona Sul ter passado a se interessar mais por isso”, aponta.

Hip hop manteve relação amistosa com outros estilos


Pode soar redundante, mas cabe dizer que o hip hop em Minas sempre se manteve estável – fator que hoje permite vislumbrar um futuro mais próspero – porque vem cumprindo sua trajetória mineiramente, sem alarde e sem conflitos. Entre os anos 70 e 80, o gênero viveu em simbiose com o soul e o funk clássicos, que remontam a James Brown, e, a partir dos anos 90, passou a conviver de maneira amistosa com o chamado pancadão carioca. Dokttor Bhu lembra que, há 20 anos, a primeira leva de representantes do hip hop mineiro tinha como espaço de expressão os bailes soul. “Não existia ainda uma cena específica para o rap, então o pessoal se encontrava era nas festas de soul e funk. Eu morava em Venda Nova e saía de lá para ir até o morro do Papagaio, onde o Lili, do Black Soul – um dos primeiros grupos de rap da cidade -, colocava som”, recorda. Lord Tuca confirma que os ambientes eram compartilhados por diletantes do funk, do soul e do incipiente hip hop.
“Tinha um projeto, o `BH Canta e Dança´, do qual a gente participava, que reunia vários grupos de dança e MCs, tanto o pessoal mais ligado ao funk clássico quando a galera que já estava mais ligada no rap. Esses encontros também aconteciam na praça da Savassi, na praça da Estação e no Campo do Lazer, onde hoje é o DiamondMall. Tem aí a turma que nunca largou a bandeira e sempre conviveu muito bem. O Brother Soul e o Baile da Saudade, em Venda Nova, são exemplos”, aponta.
Roger Dee destaca que, se por um lado o funk carioca nunca teve uma penetração muito significativa em Minas, por outro, ele está presente no Estado desde o final dos anos 80, mas numa relação harmoniosa com o movimento hip hop. “Sempre foi tudo muito bem dividido, nunca teve problema, pelo contrário, como a cidade é pequena, existe um respeito mútuo. Os dois movimentos, do funk carioca e do rap, têm seu espaço definido e um nunca saiu perdendo por causa do outro. É cada um do seu lado, mas ninguém tem nada contra ninguém”, diz.
Ele pondera, contudo, que houve um período de estranhamento, justamente quando o funk carioca começou a chegar à cidade. Roger ressalta que, nesse sentido, Belo Horizonte viveu no final dos anos 80 e início dos 90, numa proporção bem menor, o que São Paulo vive hoje. “Quando o funk chegou aqui, o hip hop ainda era muito incipiente, então teve um racha. Naquela época sim, nós perdemos um pouco de espaço, quer dizer, o que está acontecendo em São Paulo atualmente a gente viveu há 20 anos”, aponta.
Ele diz que a situação se equilibrou e hoje o rap se mantém nas periferias num esquema que é quase de parceria com o funk carioca. “Os eventos de hip hop estão mais concentrados no centro da cidade e na Zona Sul. Na periferia acontecem mais os bailes funk, mas muitos deles recebem com frequência os MCs e DJs de hip hop”, diz.